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A amizade. Aquele sentimento bom, feliz e livre. Livre de convenções, de barreiras, de segredos, de constrangimentos.  Aquele estar, amplo e leve, apenas por estar, não importa o que se diga. Aquele querer sempre estar, aqui, além, do infinito ao ante finito, que é o pouco tempo que nos resta.  Aquele amar sem vergonhas, sem rodeios, sem medos. Aquele gostar que aumenta sempre, sem que nos importem as contrariedades, nem as venças e desavenças, desfeitas num abraço sentido. Por isso, por ser tão verdade, a amizade não tem fim nem hora marcada para o regresso.  A amizade é um reencontro constante, é brisa doce que ondula ao verde-mar do campo, da terra perfumada.  A amizade é sermos humanos, é sabermos que somos falhos e imperfeitos, é reconhecer os nossos erros e os dos nossos irmãos-amigos, e recebê-los com delicadeza, compreensão e respeito.  Porque nesta vida andamos todos a aprender, todos, sem exceção.

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remar

setembro 2017


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Falta-me a força para caminhar. Tremem as pernas, a cabeça. Na transição para o piso há um torpor que se interpõe entre o meu corpo e a terra. Não é inverno nem verão, aqui. Não é calma nem revolta. Não é silêncio nem estrondo. Burburinho, talvez. 
Passados tantos anos de para aqui vir, há uma estranheza residente, um querer inconstante, uma dúvida persistente. Atrás, o pano da esperança. É Setembro. Está na hora de acabarem as férias. Aproximam-se as aulas, os livros, os cadernos frescos, as folhas de papel, o cheiro a novo dos livros, acabados de comprar.

A praia, o sal impregnado no cabelo, os gelados, as pulseiras de couro, as horas mortas de calor, o corpo estafado de nadar. Contra as ondas, o teu rosto, que foi meu, o dever cumprido, a ordem, a descontracção merecida, depostas as horas de marranço inconsequente.
Mais vale parecer do que ser. Mais vale a ordem cega do que a consciência do nada que somos. Porque quando as ondas brilhavam e o teu, meu, rosto repousava sobre a água, e os olhos se fechavam à passagem da brisa quente, nada mais existia senão aquela sensação rara e impossível de paz, de harmonia, de estar bem com a vida e com o mundo.

Mas o presente é duro. Porque tudo passa, e até a paz cansa e decai. Há uma altura, que não sei precisar, em que nada do que passou faz sentido, em que o estar bem de outrora se revela ilusão, em que é impossível estar bem quando por dentro há uma tristeza perene e densa.

O aqui e agora é estranho, quando dentro de nós há uma memória assertiva e constante que nos traz à lembrança a desigualdade, o precipício de outras gentes, a reclusão de outros corpos, de outros sentires, de outras inquietações, irmãs na perda e na descrença.

O tempo passa muito depressa. A agonia não. E por mais que me esforce, por mais que procuremos agir de forma consentânea com os papéis que nos foram atribuídos, a fragilidade é grande, e a incapacidade para separar as águas monopoliza tudo e a cada instante. 

Não estou aqui senão por ti. E no entanto, por mais que o esteja, desejo sempre estar noutro lugar, longe.

Preciso de voltar a ler, de estudar, de encontrar desesperadamente uma explicação, uma solução, um plano terapêutico que te ponha bem. Espero sempre encontrar uma publicação miraculosa, um sonho tornado número, um preparado tornado referência. Mas infelizmente, e por mais que o desejemos, há limites, há barreiras intransponíveis, há desconhecimento, muito desconhecimento.

E nem por ti, nem pelo teu bem consigo sair deste marasmo. Desta relutância. Deste engenho precário que encontrei - fugir. Fugir dos outros, dos lugares que foram nossos, da consciência de tudo isso, das pessoas que amo, da vida.

Não sei como terminar esta contenda. Por vezes o álcool, por vezes a chuva que embala, o fumo de um cigarro, que aspiro sôfrega ao ar frio do final do dia. Não sei para onde iremos assim, mas iremos, seguramente que iremos, pois não nos resta outra alternativa senão ir continuando a comer, a respirar, a encontrar motivos e perguntas e necessidades e planos e projectos sem destino.

A vida tem tanto de milagre como de desespero. Erguemo-nos sem vontade, conduzimos freneticamente para não nos atrasarmos para o trabalho, ultrajando-o, porém, sobre todas as formas e perspectivas. 

Caminhamos a custo para um dia que se sabe pesado e grande. Mas durante o dia, quando confrontados com gente como nós, a angústia dilui-se pela necessidade absoluta da concretização. E as horas e os dias passam, bem ou mal, passam. No final, ocorre por vezes aquele momento em que sentimos que a missão foi cumprida. Dura pouco, algumas horas, até que um novo dia se inicia e tudo recomeça, outra e outra e outra vez.

Quando paramos e pensamos no que foi feito, sobrevém o que ficou por fazer, por dizer. A vida, a nossa vida própria, que subjugamos, que deixamos sempre para trás. 

Neste espelho, nesta casa, já fui tantas pessoas diferentes, na continuidade do que fui e sou. Já amei, já sonhei, já acreditei no mundo e nos homens, já fui feliz e triste e insatisfeita. Mas tudo isso foi passado, pois é no passado, perspectivando-o, que somos sempre qualquer coisa. E é assim sempre, por mais que se não acredite, por mais que seja o vazio presente.

Longe caminho, este, por que passamos sós. Despido corpo, o nosso, que se reveste de recordações e memórias. Pretensioso sonhar que germina e freme, ainda, no seio de todas as desilusões. 

Sonhar é tudo o que me resta, é sentir primeiro, força vital que me desperta. Porque a vida é uma só, esta, e tu és tu só porque nela, e ela é vida porque tu és nela, na abstracta presença que és.

Vivemos de amar o próximo. Sentir é ter a consciência plena dessa falha.

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