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A amizade. Aquele sentimento bom, feliz e livre. Livre de convenções, de barreiras, de segredos, de constrangimentos.  Aquele estar, amplo e leve, apenas por estar, não importa o que se diga. Aquele querer sempre estar, aqui, além, do infinito ao ante finito, que é o pouco tempo que nos resta.  Aquele amar sem vergonhas, sem rodeios, sem medos. Aquele gostar que aumenta sempre, sem que nos importem as contrariedades, nem as venças e desavenças, desfeitas num abraço sentido. Por isso, por ser tão verdade, a amizade não tem fim nem hora marcada para o regresso.  A amizade é um reencontro constante, é brisa doce que ondula ao verde-mar do campo, da terra perfumada.  A amizade é sermos humanos, é sabermos que somos falhos e imperfeitos, é reconhecer os nossos erros e os dos nossos irmãos-amigos, e recebê-los com delicadeza, compreensão e respeito.  Porque nesta vida andamos todos a aprender, todos, sem exceção.

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Vai-se vivendo entre gente. Os lugares estão todos ocupados, nos cafés, nas lojas, nos bancos frente às lojas de gelados. Serve-se sempre um cafezinho por aqui e por ali. Até escrever sobre o momento ficou mais fácil, seja num telemóvel, seja num computador armadilhado com corretor ortográfico. Piora sempre um pouco, é certo, quando nos corrige palavras às quais se comeram letras, ou quando somos coagidos a aceitar tal transformação incorreta, in-co-rre-()-ta, sob pena daquele tracejar ziguezagueado vermelho nos vir a afetar o discernimento.

Infelizmente somos muito fracos e o tempo é muito curto para nos dedicarmos a tais contendas reivindicativas, ditas fora do plano e objetivos vigentes. Ser diferente, tentar sê-lo, dá ocupação, mas tira trabalho, e é preciso comer. Gostava tanto que o meu instinto de sobrevivência fosse tão laxo quanto o meu querer estar nesta vida diária. Mas os circuitos divergem algures na nossa cabeça e as águas separam-se a ponto de nos tornarmos autómatos do paradoxo, incoerentes, como o tal sentido de justiça, de uma justiça que se afigura com tino e verosimilhança, mas que não existe além dos manuais da jurisprudência, tal como o nome indica, dos manuais, tão somente.  

Hoje está tudo cheio. Até os passeios estão cheios de malta, de putos fumegantes passando o tempo sobre rodas de skate e charros e garrafas de vodka ou absinto. Sim, porque a Lisboa do Cesário ainda vive a absinto e luzes toscas e oleosidades estranhas.

Mas voltando ao atolamento das ruas, das casas, das famílias, que sempre questionam quando voltamos para casa e não conseguimos esboçar um sorriso, proferir um cumprimento que seja de acordo com o amor e tolerância que por nós têm aqueles que nos amam e que amamos, ou que vamos amando dentro do possível, mas regressando a este atolamento comportamental, errado e feio e displicente, sobrevém a dormência, este estado de anestesia em que vivo, esta aceitação atormentada e incómoda que se perpetua, de dia em dia, de pedaço  em pedaço do tempo que passa.

E nem nos exemplos extremos, nem nas mãos cansadas do trabalho, de levarem pancada, nem na fome, nem na solidão dos outros, se afasta esta angústia egoísta, esta tristeza perene, quando a vida nem tem sido assim tão má.

Sinto-me a pior pessoa do mundo, é um facto, sinto-me longe dos propósitos primordiais, coloco-me à margem da partilha, da aceitação dos pares. Na realidade, violo todas as leis que considero justas e salutares. Porque a ânsia, que teima e persiste, a angústia sempre presente, a sensação eminente de perda, a saudade latente das coisas que foram más, mas que foram, a sensação de seguir no caminho errado, a superação de mim que a mim imponho, o não aceitar que a vida é mesmo isto e só.

Resvalo assim, faminta e triste, por estas ruas cheias, preenchidas de vazios como o meu, de silêncios que se extinguem em sorrisos e abraços e gelados e crepes e copos de três ou quatro ou nem sei já. Resvalo só no aconchego gelado do desespero apaziguado, da gente que sorri. 

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