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A amizade. Aquele sentimento bom, feliz e livre. Livre de convenções, de barreiras, de segredos, de constrangimentos.  Aquele estar, amplo e leve, apenas por estar, não importa o que se diga. Aquele querer sempre estar, aqui, além, do infinito ao ante finito, que é o pouco tempo que nos resta.  Aquele amar sem vergonhas, sem rodeios, sem medos. Aquele gostar que aumenta sempre, sem que nos importem as contrariedades, nem as venças e desavenças, desfeitas num abraço sentido. Por isso, por ser tão verdade, a amizade não tem fim nem hora marcada para o regresso.  A amizade é um reencontro constante, é brisa doce que ondula ao verde-mar do campo, da terra perfumada.  A amizade é sermos humanos, é sabermos que somos falhos e imperfeitos, é reconhecer os nossos erros e os dos nossos irmãos-amigos, e recebê-los com delicadeza, compreensão e respeito.  Porque nesta vida andamos todos a aprender, todos, sem exceção.

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Cacela
(foto de MJF)

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O meu lugar no mundo é sonhar. Acordar é uma névoa que perturba, que em mim estreita a capacidade de viver.

Valem-me aqueles que amo e me são próximos, certamente que sim. Valem-me as emoções conjuntas, o sentir que não estou só.

Mas fixar o rosto nos ponteiros do relógio, atentar na cinética lenta da luz, seguir o rasto certo da terra quente, segundo a segundo, de vazio em vazio, exaspera e corrói.

Há vários caminhos a seguir. Há perfeições diversas, que ora singram, ora caem no saco fundo da repulsa. Há certos e errados simultâneos. Há sorrisos e trismos cínicos coincidentes, brilhando nas mesmas bocas ímpias, mas alvas.

Porém, ciente da homogeneização dos opostos, da continuidade dos sentidos, que se opõem e tocam sincronicamente, tudo faço para evitar o que me é estranho. E talvez seja por isso que não consigo conceber a vida prática sem pólos, sem modelos binários, sem verdades opostas e exclusivas entre si.

Porque pensar de outra forma, sentir e perceber a falta de sentido que somos nós no mundo dos actores, seria conceder-me o comando de um barco à deriva. Pior, de uma deriva que, com o tempo, me encarreguei de amainar com deslumbramentos e ideias crassas.

Apesar das evidências, dos factos diacrónicos, teimo em repetir os mesmos erros, as mesmas indulgências, as mesmas concepções utópicas e românticas. Continuo a não aceitar o modo de existir em proveito próprio, doa a quem doer. Não consigo calar a revolta que me causam a injustiça, a desigualdade, o desrespeito, a arrogância.

Perdi muita coisa. Perdi-me a mim nesta contenda. Ganharam os maiores, os soberbos, aqueles a quem se não pode questionar ou confrontar, aqueles que nos sugam a alma regozijo próprio, aqueles ilustres que se pavoneiam pelos corredores da ignorância e amedrontamento. Aqueles que, sendo tudo isto, esboçam e apontam sem escrúpulos os defeitos horríveis dos que se não subjugam.

É difícil viver à luz do dia. Dizem que faz mal à pele, mas o pior é o galgar do sol sobre a minha inutilidade, toda ela revelada ao meio-dia, à uma, às duas, às três, às quatro ainda, quando não às cinco, seis, sete.

Por vezes procuro o sono para que o tempo passe mais depressa. Se tiver sorte, talvez o despertar seja já no fim da tarde, sem sol visível, mas ainda com aquela nesga de luz torrada e roxa do ocaso austral.

Depois vem o fresco despojado da noite. Traz consigo a vigília ébria, um certo encantamento pelo viver contraditório, que está sendo vil e amargo e próspero e ameno, mas não ali, não naquela hora silente e mágica da brisa que corre livre pelas ruas sem gente. Ninguém me olha, ninguém me escuta.

É nesse lugar que reside a esperança, a coragem, a vontade débil mas presente de olhar de frente para o mundo, a força com que procuro reerguer-me deste modo acabrunhado de ser e estar - o único possível entre corpos e pensamentos transacionáveis.

É absurdo como o nosso cérebro se deixa enredar por desígnios alheios. É sem sentido próprio esta corrida contra o tempo, esta ambição desmesurada de ser feliz, de ter um papel a desempenhar, um significado qualquer na engrenagem do porvir.

Sei-me transitória, perecível. Há muito que perdi a cor e o brilho, e o sentido (nenhum) que me trouxe até aqui. Não sei que lugar é este, que tempo é este, que ser-me é este que estou sendo.

Sei porém que a brisa do jasmim-da-noite, em não tardando, chegará, e com ela o odor alfarrobado dos Verões esfuziantes de outrora, o sabor ficáceo das palavras vivas, a simplicidade original. 

É hora de olhar as estrelas, de sentir o calor da eira quente sob o dorso. Cheira a sal, a mar. É melífluo o travo da amêndoa, depois de ser árvore e flor. É indefinido o sonho e o fruto que é nele só.

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