Cacela
(foto de FP)
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O meu lugar no mundo é sonhar. Acordar é uma
névoa que perturba, que em mim estreita a capacidade de viver.
Valem-me aqueles que amo e me são próximos,
certamente que sim. Valem-me as emoções conjuntas, o sentir que não
estou só.
Mas fixar o rosto nos ponteiros do relógio,
atentar na cinética lenta da luz, seguir o rasto certo da terra quente,
segundo a segundo, de vazio em vazio, exaspera e corrói.
Há vários caminhos a seguir. Há perfeições diversas,
que ora singram, ora caem no saco fundo da repulsa. Há certos e errados
simultâneos. Há sorrisos e trismos cínicos coincidentes, brilhando nas mesmas
bocas ímpias, mas alvas.
Porém, ciente da homogeneização dos
opostos, da continuidade dos sentidos, que se opõem e tocam sincronicamente, tudo
faço para evitar o que me é estranho. E talvez seja por isso que não consigo conceber
a vida prática sem pólos, sem modelos binários, sem verdades opostas e
exclusivas entre si.
Porque pensar de outra forma, sentir e perceber
a falta de sentido que somos nós no mundo dos actores, seria conceder-me o
comando de um barco à deriva. Pior, de uma deriva que, com o tempo, me
encarreguei de amainar com deslumbramentos e ideias crassas.
Apesar das evidências, dos factos diacrónicos,
teimo em repetir os mesmos erros, as mesmas indulgências, as mesmas concepções
utópicas e românticas. Continuo a não aceitar o modo de existir em proveito próprio, doa a quem doer. Não consigo calar a revolta que me causam a injustiça, a desigualdade, o desrespeito, a arrogância.
Perdi muita coisa. Perdi-me a mim nesta contenda. Ganharam os maiores, os soberbos, aqueles a quem se não pode questionar ou confrontar, aqueles que nos sugam a alma regozijo próprio, aqueles ilustres que se pavoneiam pelos corredores da ignorância e amedrontamento. Aqueles que, sendo tudo isto, esboçam e apontam sem escrúpulos os defeitos horríveis dos que se não subjugam.
É difícil viver à luz do dia, suportar o galgar do sol sobre a minha inutilidade, toda ela revelada ao
meio-dia, à uma, às duas, às três, às quatro ainda, quando não às cinco, seis,
sete.
Por vezes procuro o sono para que o tempo
passe mais depressa. Se tiver sorte, talvez o despertar seja já no fim da
tarde, sem sol visível, mas ainda com aquela nesga de luz torrada e roxa do ocaso
austral.
Depois vem o fresco despojado da noite. Traz consigo a vigília ébria, um certo encantamento pelo viver contraditório, que está sendo vil e amargo
e próspero e ameno, mas não ali, não naquela hora silente e mágica da brisa que
corre livre pelas ruas sem gente. Ninguém me olha, ninguém me escuta.
É nesse lugar que reside a
esperança, a coragem, a vontade débil mas presente de olhar de frente para o mundo, a força com que procuro reerguer-me deste modo acabrunhado de ser e estar - o único possível entre corpos e pensamentos transacionáveis.
É absurdo como o nosso cérebro se deixa enredar por desígnios
alheios. É sem sentido próprio esta corrida contra o tempo,
esta ambição desmesurada de ser feliz, de ter um papel a desempenhar, um
significado qualquer na engrenagem do porvir.
Sei-me transitória, perecível. Há muito que
perdi a cor e o brilho, e o sentido (nenhum) que me trouxe até aqui. Não sei que lugar é este,
que tempo é este, que ser-me é este que estou sendo.
Sei porém que a brisa do jasmim-da-noite, em não tardando, chegará, e com ela o odor alfarrobado dos Verões esfuziantes
de outrora, o sabor ficáceo das palavras vivas, a simplicidade original.
É hora de olhar as estrelas, de sentir o calor da eira quente sob o dorso. Cheira a sal, a mar. É melífluo o travo da amêndoa, depois de ser árvore e flor. É
indefinido o sonho e o fruto que é nele só.
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