Somos,
dizia um amigo algures no tempo, demasiadamente tenrinhos, sobretudo para o
mundo que nos espera lá fora.
O pior é que nos achamos sempre maiores, alguma coisa mais importante do que
tudo aquilo que evidentemente nos perturba e causa dúvida e incertezas.
Na realidade, não passamos de uns moços armados em seres com super-poderes,
dotados de super-inteligência.
Acreditem, caríssimos, que este tecto velho só ainda não ruiu porque são ruins
as carcaças que o carregam.
Vocação, que vocação? A vocação constrói-se, dia-a-dia, com humildade e
perseverança. Mais do que passar dias e noites em claro, a decorar frases sem
nexo, para manter o status académico, há que parar para olhar em
volta, respirar um pouco de ar, compreender o mundo em que somos e são os
nossos pares, as pessoas reais, perecíveis e carentes, como nós.
A dor não se alivia exclusivamente com fármacos. A angústia, o medo, a
frustração, a perda, não se compadecem com meia dúzia de teorias.
A fluência médica resulta da espontaneidade do momento, da troca e partilha
entre pessoas, da subjectividade, do olhar profundo que a experiência nos vai
dando em crescendo.
Na faculdade não nos ensinam a ser homens, porque não há tempo, porque se teima
em enfiar o Rossio na Rua da Betesga. Vociferam-se palavrões, num tempo de
antena tantas vezes imposto a contra-gosto e sem vontade.
Mas no meio de toda a falta de sentido, de toda a desistência que se nos
oferece e ocorre, há que manter o fio condutor de nós mesmos. Há que, com calma
e tempo, sedimentar o conhecimento. Há que procurar sempre o caminho no sentido
inverso, colocarmo-nos no lugar do outro, daquela pessoa que sofre e que espera
de nós a mesma dignidade e respeito.
Não bastarão seis anos de curso mais outros tantos de internato, nem mesmo uma
vida inteira. Ser médico é aprender sempre, é um não saber permanente, é um
partir constante para algo que continuadamente se questiona, cá dentro, mesmo
naqueles instantes breves em que sentimos ter feito algo de bom por alguém.
Tocar no corpo vivo, que estendido sobre a marquesa passa a ser a extensão das
nossas mãos e braços, tomar o corpo quedado, que em nós confia, sentir e
escutar a dor, que quase sempre transgride as cercanias do tangível, tudo isto
são formas líricas de dizer o quanto de intrusivo há naquilo que fazemos.
Pesa-nos, portanto, uma responsabilidade imensa, uma honestidade imensa que se
não pode quebrar, mesmo quando o nosso mais profundo desejo é não sentir a tal
massa dura que cresce, é não ver a hipotransparência heterogénea e excêntrica
que escandalosamente se revela.
Ser médico é amar o próximo sem direito a sonegar o diagnóstico mais cruel. É
estar em permanente colisão com o desejo sincero de que se não passe nada, de
que esteja tudo bem. É suportar o fardo terrível da comunicação sincera e
clara, por pior que seja o veredicto patológico. É assumir guerras e
batalhas que se sabem perdidas à partida, sempre com uma palavra de conforto,
de esperança. Ser médico é arregaçar as mangas, sem coibição no esforço. É ser
justo e humilde. É respeitar, respeitar.
Ser médico é também ser pessoa. E ser pessoa é ser frágil, débil no sono que
tarda quando são connosco as memórias que trazemos para casa, para a vida
corrente.
E depois, no meio de tudo isto, de toda esta ambivalência, há o amor, que
complementa a ausência de sentido. O amor combativo, que a sensação de perda,
iminente, não deverá nunca interditar.
Porque amar em plenitudes e vazios, e reconhecendo essas plenitudes e
vazios, imprevisíveis mas antecipáveis, é o motivo maior para que se não perca
a esperança no homem e no propósito de viver.
(...)
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